REVIEW // Em Parte Incerta

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Em Parte Incerta // Gillian Flynn // 2013 // Bertrand Editora // 520 p.

Sinopse

Uma manhã de verão no Missouri. Nick e Amy celebram o 5º aniversário de casamento. Enquanto se fazem reservas e embrulham presentes, a bela Amy desaparece. E quando Nick começa a ler o diário da mulher, descobre coisas verdadeiramente inesperadas…
Com a pressão da polícia e dos media, Nick começa a desenrolar um rol de mentiras, falsidades e comportamentos pouco adequados. Ele está evasivo, é verdade, e amargo - mas será mesmo um assassino?
Entretanto, todos os casais da cidade já se perguntam, se conhecem de facto a pessoa que amam. Nick, apoiado pela gémea Margo, assegura que é inocente. A questão é que, se não foi ele, onde está a sua mulher? E o que estaria dentro daquela caixa de prata escondida atrás do armário de Amy?
— Fonte: Wook

Opinião

Primeiro, um aviso: isto vai estar cheio de spoilers porque eu sinceramente não sei quando me devo calar.

Recebi tantas opiniões díspares sobre este livro, ainda antes sequer de o comprar, que já não sabia para onde me virar; alguns apresentavam-mo como o pináculo da ficção de suspense, outros repudiavam a suposta genialidade do livro como opiniões de gente que nunca tinha lido um thriller a sério. E, após acabar de o ler, apercebi-me com alguma surpresa que a questão de se o livro era genial ou medíocre era simples: nem um, nem outro.

Em Parte Incerta é um bom livro, que cumpre os requisitos básicos de um suspense que se preze: um enredo com um desenvolvimento lento, mas nem por isso maçador de se ler, uma premissa interessante e, vamos admiti-lo, particularmente inteligente, e personagens tridimensionais que a desenvolvem de forma cativante.

Existem falhas, obviamente: não percebo, por exemplo. a necessidade de se dar tanto tempo de antena à beleza de Amy, visto que não tem grande importância para o enredo e que faz o leitor, a certa altura, estar a revirar os olhos às descrições da mulher como se estivéssemos a ouvir pela trigésima vez as histórias de vida daquele nosso familiar com falta de memória. Sim, avô, já se ouviu que a Amy é muito bonita, o senhor já disse. Passe mas é os tremoços, se não se importa. Além do mais, ter personagens fisicamente atraentes não é grande novidade na ficção; são poucos os escritores que têm a coragem de não criar personagens que não se encaixam no predefinido "pele clara e limpa de imperfeições, cabelo sedoso de uma cor qualquer sempre descrita como brilhante e olhos também brilhantes porque pronto". Se a amiga Flynn queria dar ênfase nalguma coisa, bem podia ter escolhido uma das partes mais originais do seu livro.

Nota-se ainda que a autora cai muito naquele faux-pas de achar que uma personagem feminina forte tem de ter uma atitude agressiva para todas as outras mulheres do elenco. Claro, Amy tem um complexo de superioridade maior que a dívida portuguesa e sente a necessidade de se afirmar perante toda a santa alminha num raio de vinte quilómetros, mas esta necessidade torna-se mais latente quando a pessoa em questão é outra mulher. Seja a amante do marido (a quem ela, que se afirma uma pessoa friamente lógica, atribui grande parte da culpa da traição, esquecendo-se convenientemente que a outra é uma adolescente impressionável a quem o marido devia ter recusado qualquer avanço porque era o adulto em posição de poder social) ou a mãe do ex-namorado dos tempos de escola, há sempre uma agressividade específica, um slut  ou um whore atirados aqui e ali o suficiente para nos questionarmos da posição de Amy quanto a pessoas do mesmo género. Menos catfighting, por favor.

Além disso, descrever o cheiro de algumas mulheres como "vaginal"? Mas que merda é essa, Gillian Flynn? Que trip de ácido lixada é que se abateu sobre ti quando achaste que isso era não só verosímil, mas uma ideia nada estúpida?

No entanto, e para minha surpresa, essa não é a principal razão que outros reviewers apontam para as falhas de personagem da Amy. Em vez de pegarem por aí, prendem-se ao facto de que "Amy é uma personagem virtualmente perfeita, uma mary-sue desequilibrada".

Espera. O quê?

Primeiramente, alguém que chegue ao fim do livro e ache que Amy é perfeita tem de pensar seriamente em voltar a lê-lo. Segundamente, o que me dá a entender nesta situação é que as pessoas adoram consumir material mediático em que a personagem principal é narcisista, arrogante, extremamente inteligente e com um grave complexo de superioridade, e depois viram-se e desprezam uma personagem feminina que reúne disse traços.

Desculpem lá se parece que tenho algum tipo de agenda social, mas é que não deixa de me picar: todo o arco de personagem de Amy é construído para nos fazer perceber que ela é tremendamente falha enquanto pessoa. E uma das suas principais falhas é usar a sua inteligência em proveito dos seus interesses, e ser tão centrada em si própria que acha que tudo o que faz é justificado (desde fingir a própria morte a, vocês sabem, matar alguém). Agora, onde é que eu já vi alguém assim (humSHERLOCKHOLMEShum) sem que ninguém pestanejasse para lhe chamar "personagem desequilibrada"? Não deixa de ser interessante.

Isso pode ser ainda comprovado quando lemos o lado de Nick da história: ela manipula-o, ele detesta-a, ele percebe que ela é doentia mas vê-se preso, encurralado, com o futuro da sua vida nas mãos da sua esposa sociopata. Não a perdoou pela sua inevitável perfeição, mas resignou-se à sua situação de prisioneiro.

E é isto que Em Parte Incerta é, na sua essência: uma história de abuso e manipulação, relações distorcidas, traços da Síndrome de Estocolmo, tudo embrulhado num enredo bastante interessante com uma intriga inteligente e personagens críveis. Pode não ser a coisa mais brilhante do lado de cá da Terra, mas não é tão mau como as pessoas dizem ser.

★★★


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