Pollock e o mito da arrogância artística

22:09:00

Imagem: Sony Movie Channel

Há umas semanas tive de ver, por razões académicas, Pollock, um filme biográfico de 2000 realizado e protagonizado por Ed Harris, que conta a história de vida e carreira do expressionista-abstrato americano Jackson Pollock.

Lá escrevi o que me mandaram acerca da "crítica latente no filme acerca da relação entre artista e consumidor de arte", apesar de metade do texto ser eu a filosofar sobre a dispersão de conteúdo artístico no meio digital porque estou num curso de comunicação, não de artes; mas o filme não me desceu muito bem pela goela - era tipo aqueles churros da feira que o corpo rejeita ainda eles não tocaram na faringe. A razão dessa insistente birra, percebi-a enquanto escrevia o tal trabalho, só que o tema não me deixou expressar o meu desagrado. Então cá o apresento, a ver se finalmente consigo dirigir o puto do filme.

Na sua essência, Pollock insere-se numa corrente de filmes e obras biográficas que se dedica a contar a história trágica dos “génios imperfeitos”, artistas e visionários que criam obras extraordinárias mas que destroem tudo à sua volta – corrente na qual se podem inserir Modigliani (2004) e Steve Jobs (2015) se quiserem falar de filmes, ou até O Mentalista, NCIS e Perception se falarmos de séries. E estes pecam, a meu ver, pela forma apologética com que apresentam as pessoas que se propõem a trabalhar.

Esta corrente irrita-me. Pollock, assim como tantas outras histórias do género, conta-nos com pompa e circunstância a triste vida de um génio incompreendido cujo peso da sua própria superioridade acaba por esmagar as relações pessoais, vítima de um sistema de pressão a que acaba por sucumbir.

E isto quando, numa leitura mais atenta, tanto Pollock enquanto personagem como todas as inseridas em histórias do género podem ser interpretadas meramente como pessoas tóxicas e desequilibradas que, por não procurarem ajuda, arruinam vida das pessoas que os rodeiam. E que poderiam ser escorraçadas ou ignoradas se se resumissem a este problema, mas que o facto de serem boas naquilo que fazem parece desculpar.

E nem são só os artistas em sentido restrito. Aqui vos apresento o Senhor "Hurr durr sou um agente que constantemente desrespeita os meus superiores, trata a baixo de cão a minha equipa, joga para trás pessoas que genuinamente me querem ajudar, mas não importa porque sou bom no meu trabalho."
 Aqui entra uma questão que junta arte e humanidade: falando de um ponto de vista estritamente do foro da história do filme, será que as obras geniais de Pollock têm mais valor que as vidas que ele arruinou na sua espiral de autodestruição? Será que o “artistic breakthrough” ao qual ele, a certo ponto, acabou por chegar, valeu a quase destruição da carreira de Lee Krasner, a sua ligação com a sua família, e a vida de Edith Metzger?

E é por isto que este tipo de histórias me aborrecem: porque passam a ideia de que o génio e o talento daquelas pessoas é mais importante que as pessoas que arruínam pelo caminho. Porque apresentam o artista e o visionário como alguém que parece ter vendido a alma e a empatia pelo seu talento. Quando, vá, vamos lá assentar isto, um grande artista não tem de ser tão desconectado do mundo que perca a sua ligação com os outros.

Existem às mãos-cheias os artistas de qualquer área que são simultaneamente mestres naquilo que fazem e seres humanos fantásticos - vamos parar de fingir que ser arrogante ou tóxico é um pré-requisito para se ser um bom artista.


O problema aqui, esclareço já, não é o de apresentarem o artista como uma pessoa com defeitos; toda a gente tem defeitos, e a humanização do artista é algo digno de nota. Mas o que se vê mais não é humanização, é o contrário: não é "olhem para esta pessoa, que faz o que gosta e é boa nisso, mas tem problemas e às vezes é uma filha da puta mas é fundamentalmente uma boa pessoa e tenta ao máximo fazer o que é certo", é mais do género "olhem para esta pessoa que é talentosa além-fronteiras e que não se preocupa com ninguém à sua volta, mas não faz mal que destrua a vida de toda a gente e nem se preocupe, porque a sua obra é fantástica!". E este ideal é, para pôr isto por miúdos, desumanizador.

Parem com essa merda, por favor. Artistas são, fundamentalmente, pessoas, e (penso eu) gostariam de ser tratados como tal: pessoas que fazem arte, não ícones inalcançáveis cujas falhas de caráter são desculpadas pela sua arte.

Pollock ter "revolucionado a arte na sua época" não desculpa o facto de ser um alcoólico adúltero que matou uma rapariga inocente por conduzir bêbado. Tenham uma boa noite.

Posts Sugeridos

0 comentários

Popular Posts

Like us on Facebook

Flickr Images