Uma Análise a Crónica do Pássaro de Corda: As Coisas

13:53:00


 Imagem por Mark Boardman
Bem-vindos a mais uma edição de "Diniajs passa demasiado tempo a analisar um livro de Murakami em vez de ir acabar os trabalhos da escola". Porque quem é que quer ir falar do bêbado do Pollock quando temos, literalmente, coisas mais interessantes para debater?

As Coisas

Sabem como no Pulp Fiction há aquele grande mistério em torno da mala que Vince e Jules recuperam? Como esta é o objeto que move o enredo adiante, mas o que está realmente dentro dela é um mistério sujeito a teoria atrás de teoria sem, no entanto, haver resposta concreta?

As Coisas são basicamente a mala da Crónica do Pássaro de Corda.

Existe um grande debate em torno do que são, realmente, as Coisas que existem no interior das pessoas, e que são referidas no enredo continuamente. Mas, para podermos teorizar sobre o que são as Coisas, temos de analisar as passagens onde estas têm um papel central.

A Coisa é:
  • Aquilo que Noboru retira a Creta Kano, fazendo-a sentir-se vazia e desonrada após a remoção (referindo-se até a esta extração como uma violação).
  • Aquilo que o Tenente Mamiya via no fundo do poço quando o sol conseguia atingi-lo, durante alguns segundos, uma vez por dia - e que, segundo ele, ficou no fundo daquele poço, pois tornou-se uma pessoa vazia de significado após essa altura.
  • Aquilo que May - e esta é a tal pista importantíssima - diz habitar no interior das pessoas, e que lhes fornece calor.
  • Algo cancerígeno que Noz-Moscada enfraquece no interior das suas clientes.
Os dois primeiros pontos parecem entrar na mesma linha. Nesta, as Coisas podiam ser interpretadas como a essência, a identidade, ou até a alma das pessoas.

Noboru é uma pessoa fria, calculista e perigosamente poderosa, que poderia, metaforicamente, remover a alma de uma pessoa, fazê-la perder a razão de viver e ficar vazia por dentro. Dada a propensão da história de misturar metafórico com real, a extração física da Coisa podia muito bem ser o retirar da alma de Creta. O tormento pelo qual Mamiya passou no fundo do poço, a definhar, sem saber se iria morrer ali dentro longe do seu país, é razão suficiente para que a sua alma se esvaia. Os escassos segundos de luz que tinha por dia, após ser novamente envolto em escuridão durante horas a fio são indícios e catalizadores da esperança efémera, ínfima, que consegue desgastar o psicológico de alguém.

Mas depois temos a noção quase oposta de Noz-Moscada, de que a coisa que habita dentro das pessoas é cancerígena, como um animal descontrolado - e que as suas clientes precisam da sua ajuda a acalmá-lo, ainda que ela se sinta frustrada por não conseguir eliminá-lo por completo.

E estas duas informações, nada supreendentemente a este ponto, são unidas pela teoria de May sobre a tal Coisa:

"Eis o que eu penso, Senhor Pássaro de Corda. Toda a gente nasce com alguma coisa diferente no cerne da sua existência. E essa coisa, o que quer que seja, torna-se uma fonte de calor que faz funcionar essa pessoa. Eu também tenho uma, obviamente. Como toda a gente. Mas às vezes ela descontrola-se. Incha e encolhe dentro de mim, e abala-me. E só quero encontrar uma maneira de comunicar isso que sinto a outra pessoa. Mas não consigo. Elas não percebem. Claro, o problema pode ser que eu não me estou a explicar muito bem, mas eu cá acho que é porque elas não estão a ouvir muito bem. Elas fingem que estão a ouvir, mas não estão, não realmente. Então irrito-me, e faço coisas estúpidas."


A minha teoria é que a Coisa é realmente o núcleo de identidade das pessoas, o sentido de "eu" que cada uma delas tem; que as faz funcionar quando existe, as deixa sem razão de existir quando desaparece, e que se torna inquietas e as faz agirem irracionalmente quando perturbado.

O que Noz-Moscada faz não é, assim, "enfraquecer" algo mau no interior das pessoas, mas sim acalmar os abalos de identidade que as mulheres que a visitam sofrem. Estas mulheres são, todas elas, figuras públicas, e o ambiente artificial, superficial e mediático a que estão expostas dia após dia pode ser a razão das perturbações no seu sentido de "quem são". Isto vem muito na linha de Noboru que, sendo uma figura de poder social importante e que conseguiu um grande estatuto nos meios de comunicação social, é também a pessoa com o poder de perturbar as Coisas dos outros.

Também Kumiko, à semelhança de May, alega que as coisas imprudentes e irracionais que fez foram derivadas a "não se sentir ela própria". Toru atribui este facto à aproximação desta com o irmão, Noboru, que a esta altura já está estabelecido como um manipulador emocional que tirou a Coisa a Creta Kano. É possível que, ao usar o seu poder de perturbar a Coisa, a identidade dos outros, Noboru tenha criado instabilidades na identidade sua própria irmã e a levado a trair Toru.

E porque é que ele faria isto? Por duas razões: a primeira é simplesmente pela sua predisposição para perturbar, que já está "no seu sangue", e para criar um paralelismo com o que fez com a irmã deles - que, coincidência seria se não se encaixasse, se suicidou graças a Noboru lhe ter tirado o sentido de viver. A segunda é que ele sabe que Toru, sendo o seu completo oposto, é assim a única pessoa que consegue fazer-lhe frente. Não só porque yada-yada-o-simplório-ganha-ao-gajo-rico TV Tropes e tudo mais, mas porque ser o seu completo oposto também significa que tem o poder oposto ao dele. Noboru perturba as identidades, Toru acalma-as. Noboru destrói as Coisas, Toru preserva a sua existência. Noboru sabe que o seu completo oposto é a única pessoa que, por ser contrário a tudo o que ele representa, lhe pode fazer frente. E Noboru é agressivo - tem de eliminar a ameaça antes que ela se expanda.


As Outras Partes

A Realidade | O Homem da Guitarra | Toru e Noboru: Dicotomias e Antagonismos | O Mistério que é May Kasahara | O Homem Vazio



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